Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo?
Há coisas que não podem ser ensinadas.
Elas estão além das palavras.
Rubem Alves
"Se te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos quis ensinar a primavera...”:
é assim que Cecília Meireles inicia um de seus poemas.
Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil.
Gelos e areias nada sabem sobre primaveras...
Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela.
O mundo seria melhor.
Mas como ensiná-la?
Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo?
Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo?
E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego?
De que pedagogia irei me valer?
Há coisas que não podem ser ensinadas, coisas que estão além das palavras. Cientistas, filósofos e professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas por meio das palavras.
Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas.
É possível desenvolver uma psicologia da solidariedade, ou uma sociologia da solidariedade, ou uma ética da solidariedade...
Mas os saberes científicos e filosóficos sobre a solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como as críticas da música e da pintura não ensinam a beleza da música e da pintura.
A solidariedade, como a beleza, é inefável – está além das palavras.
Palavras que se ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis.
Palavras que se ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis.
Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado.
Não pode ser dita.
A solidariedade pertence à classe de pássaros que só existem em vôo.
Engaiolados, eles morrem.
Walt Whitman tinha consciência disso quando disse:
Walt Whitman tinha consciência disso quando disse:
“Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo em minha alma...”
E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz:
ela aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras.
Nesse espaço vazio se ouve uma música.
Mas essa música – de onde vem ela se não foi o poeta que a tocou?
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora:
astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.
Mas há coisas que não estão do lado de fora, coisas que moram dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera...
Sim, sim! Imagine isto: o corpo como um grande canteiro!
Sim, sim! Imagine isto: o corpo como um grande canteiro!
Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes. Elas poderão acordar, como a Bela Adormecida acordou com um beijo.
Mas poderão também não brotar.
Tudo depende...
As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra.
E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas...
De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam:
as pragas, tiriricas, picões...
Uma dessas sementes é a “solidariedade”.
A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos.
Se ela fosse uma entidade do mundo de fora poderia ser ensinada e produzida.
A solidariedade é uma entidade do mundo interior.
Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz.
A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente...
Veja o ipê florido!
Veja o ipê florido!
Nasceu de uma semente.
Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça.
Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz:
“A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”.
O ipê floresce porque floresce.
Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como o ipê:
A solidariedade é como o ipê:
nasce e floresce.
Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos.
Não se pode ordenar: “Seja solidário!”
A solidariedade acontece como um simples transbordamento:
as fontes transbordam...
Já disse que solidariedade é um sentimento.
Já disse que solidariedade é um sentimento.
É esse o sentimento que nos torna humanos.
A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo.
Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas.
Eu e a criança – dois corpos separados e distintos.
Mas, ao olhar para ela, estremeço:
algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo.
E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja junto dos meus próprios sentimentos.
Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos.
Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar.
Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim.
Meu corpo sofre uma transformação:
ele não é mais limitado pela pele que o cobre.
Expande-se.
Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo.
Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por um mandamento ético.
Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por um mandamento ético.
É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade.
Pela magia do sentimento de solidariedade meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade.
O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes...
O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes...
Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e
é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.
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